por Carlos Luz
Em geral não é difícil fazer um espírito
recém-desencarnado desistir de passar o tempo a observar o cotidiano
dos vivos. Basta lembrá-lo de quantas outras coisas mais interessantes
e emocionantes ele poderia estar fazendo. Mas nem sempre é tão
simples assim.
O dia já havia amanhecido e seria esplendoroso, nenhuma nuvem
manchava o céu. O casal dormia profundamente na grande cama,
os corpos astrais a flutuar sobre os corpos físicos como balões,
ligados apenas pelo fino cordão. Uma diferença era marcante:
o corpo astral da mulher estava sereno, tão quieto quanto seu
corpo físico. Já o corpo astral do homem parecia em constante
ebulição, refletia o seu desconforto. Sentado numa poltrona
em frente à cama estava o motivo: um espírito raivoso,
que alguns vivos chamam de encosto. Ele parecia em transe, mas olhou
para mim quando me aproximei.
- Você de novo? Não desistiu? Espíritos bonzinhos
não têm mais o que fazer? - ironizou.
Podemos também chamar estes espíritos de perdidos, um
bom nome, mas não era esta a impressão que ele passava.
Era determinado, seguro, certo de seus objetivos e também de
como levá-los a curso. Queria vingança. No dia anterior
eu já havia tentado mostrar que ele estava perdendo tempo, mas
a raiva o deixava surdo aos meus argumentos. Por isto eu voltara com
outro plano.
- Não, não desisti. E se você pode ficar por aqui,
por que eu também não posso?
- Porque você não tem motivo, eu tenho. Morei na casa de
campo desde criança e ele nunca me ajudou, só queria que
eu cuidasse das plantas. Impediu até que eu estudasse, me condenando
a ser jardineiro para sempre.
Como se eu fosse um escravo, uma outra propriedade! Em vida eu nada
podia fazer, precisávamos do emprego, mas agora posso atingi-lo.
E não tente me desmentir, basta olhar para ele. Depois que cheguei
ficou nervoso, irritadiço, desanimado. Parece até que
está envelhecendo mais rápido.
Era este o problema. Enquanto o espírito sentisse que ainda podia
influenciar o mundo dos vivos, não conseguiria pensar em mais
nada. Mas eu sabia como resolver a questão.
- Se o que você quer é atingi-lo, por que não fala
tudo de uma vez?
- Como assim, falar? Eu estou morto! - replicou, como se eu fora um
asno.
- Fale quando ele estiver sonhando. Ele vai ouvir.
- Você na certa pensa que sou algum tipo de idiota, não
é? Se fosse tão fácil, todos os mortos falariam
com seus parentes nos sonhos...
- Não estou falando que é fácil. Estou falando
que sei como fazer para que ele te ouça.
- E como você aprendeu? - desconfiou, mas sem conseguir esconder
o interesse.
Eu o havia fisgado.
- Estou no astral há séculos, tive tempo para aprender
alguma coisa.
Ele ainda hesitou um momento, mas depois acenou com a cabeça,
pedindo para que eu fosse em frente. Solene, flutuei até o corpo
astral do homem e com alguns leves e precisos movimentos consegui atrair
sua atenção. Depois não foi difícil induzi-lo
a me acompanhar. O espírito raivoso parecia admirado com minha
destreza, o plano estava funcionando. Sem perda de tempo, comecei a
falar:
- Você está sonhando, mas pode nos ouvir. Preste atenção,
pois agora você terá um encontro importante. Vai descobrir
quem anda te amedrontando e atrapalhando a vida.
Então fiz um sinal para que o espírito se aproximasse.
Ansioso, ele colocou-se frente a frente com o corpo astral do vivo,
que o reconheceu e reagiu de pronto. Sorrindo com desdém, desviou
o olhar e passou a flutuar a esmo pelo quarto, como um balão
de criança, como uma pluma solta ao vento. O espírito
não se conteve, explodindo de raiva:
- Chame-o de volta! Ainda nem comecei a falar!
- Não adianta, você acaba de perder a influência
sobre ele. Não há dúvida que ele recebia uma vibração
negativa, mas ela tornou-se inofensiva agora que ele sabe de quem partia.
Afinal, você está morto e ele não acredita em vida
após a morte. Mau-olhado não pega em quem não acredita,
nunca ouviu falar? Agora ouça o meu conselho, siga o seu caminho.
- Vou continuar aqui e ninguém pode me impedir! - insistiu, irado.
- Você prefere mesmo assistir às vidas dos outros ao invés
de se interessar pelas suas? Não tem nem curiosidade em saber
quem foi e o que fez nas encarnações anteriores?
Antes que o espírito respondesse, um despertador disparou. No
mesmo instante os corpos astrais do casal voltaram para seus corpos
físicos, sugados violentamente. Logo o homem sentou-se bocejando
e desligou a campainha. Depois esfregou os olhos e percebeu que sua
mulher também despertara. Então começou a falar.
- Você não imagina o sonho maluco que tive esta noite.
Estava preso numa espécie de areia movediça úmida,
escura e espessa, mas, conformado, nem tentava fugir. Foi quando surgiu
alguém que conseguiu me tirar de lá facilmente, avisando
que faria uma grande revelação. Mas não pôde
fazê-la. Fomos interrompidos, sabe por quem? Pelo filho da caseira
de Teresópolis, aquele que morreu atropelado no mês passado.
Pode? Como era mesmo o nome dele? O engraçado é que logo
depois passei a me sentir melhor, como se uma âncora tivesse sido
arrancada dos meus pés. Que loucura, né? Sonhos são
mesmo uma grande bobagem, nada faz sentido! O bom é que acordei
sem dor na cabeça e nas costas. Acho até que vou ao clube
jogar tênis.
O espírito ficou a pensar, amargurado, até que virou-se
para mim.
- Vou embora - afirmou, vencido.
- Sabe para onde ir? - perguntei.
- Não, mas encontro o caminho sozinho.
- Boa sorte, então.
Sem sequer me responder, o espírito atravessou a parede e partiu
em busca de passado e futuro. Deixei-me ficar ali a meditar sobre como
é forte e instável o impulso de vingança, até
que a voz da mulher me interrompeu.
- Falando em Teresópolis, precisamos despedir a Dona Rita. Depois
que o filho morreu, ela não trabalha como antes, vive a choramingar
pela casa. Vou ligar para umas amigas e ver se elas conhecem alguém
mais jovem, sem filhos, de confiança e que aceite morar na serra.
- Cuidado para não se cansar com tanto afazeres - ironizou ele,
alfinetando a mulher.
Ainda bem que o espírito não estava mais ali, senão
eu teria trabalho dobrado para convencê-lo a partir! Mas o casal
não precisava de influência externa para viver sob tensão,
o clima era de guerra. Colhiam o que plantaram.
Antes que ela reagisse, bateram na porta. Era a empregada, carregando
uma bandeja.
- Elza, não precisa mais trazer os remédios junto com
o café. Seu patrão acordou melhor.
- Foi porque pedi por ele no centro, patroa. Vivo no meio desde pequena,
a senhora sabe, sinto as coisas. Tinha um espírito ruim encostado
no patrão, mas com certeza enviaram um bom para buscá-lo.
- Ah tá, Elza, você e seus espíritos! Ele melhorou
e pronto, foi só isso! - desdenhou a patroa, caminhando até
o espelho.
- Meu Deus, como estou envelhecida! Plásticas, ginástica
e ainda uma fortuna com médicos, cremes e massagens! Não
sei mais o que fazer para parecer jovem!
Em vez de aproveitar a dádiva de estar vivendo numa escola rica
como a Terra, ela preferia apenas sonhar com o dia em que pareceria
outra vez jovem. E, mesmo que este dia chegasse, ela em nada melhoraria.
Continuaria apenas se preocupando em não envelhecer, em burlar
a natureza.
Ora, para ficar mais jovem basta nascer de novo, pensei, amargurado,
saindo pela janela.
Lá fora o dia continuava magnífico e eu tinha mais o que
fazer.
Carlos
Luz
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