por Carlos Luz
Rebeca
Enquanto Sérgio tentava pelo celular avisar ao proprietário
que já estávamos chegando, eu olhava o bairro passar pela
janela, desanimada. Era ermo demais. Por isto o preço estava
tão em conta. Mas eu não queria morar assim! Teria que
pegar o carro até para comprar pão! Já começava
a torcer intimamente para que o apartamento tivesse defeitos graves,
inaceitáveis. E para que Sérgio não caísse
na tentação de comprá-lo só por causa do
bom preço. Não é assim que se compra um imóvel.
É preciso calma e paciência.
Mas Sérgio não tem a paciência entre suas diversas
qualidades. Já estávamos com tudo acertado para passarmos
os primeiros meses após o casamento morando num apartamento emprestado
pelo meu tio, mas ele não parecia satisfeito com o arranjo. Queria
porque queria achar e comprar logo o nosso. Sérgio não
gostava de ficar devendo favores a ninguém.
Ele era mesmo um doce de pessoa. Um achado, como costumava dizer minha
mãe. Meu pai também andava satisfeito com o casamento.
Sérgio era sério e trabalhador, não bebia, não
jogava, e fazia qualquer coisa por mim. Todos os meses ele me mandava
flores no aniversário de namoro, nunca esquecia. Minhas amigas
morriam de inveja. Tudo o que queriam era um Sérgio para casar
com elas.
Tínhamos acabado de comprar os dólares para nossa lua
de mel, uma semana em Nova Iorque. Sérgio escolhera antes uma
viagem mais barata, afinal estávamos tentando comprar um apartamento.
Só que meus pais, conhecendo meus sonhos, acabaram nos dando
de presente as passagens e a hospedagem. Fiquei radiante, estava louca
para conhecer Nova Iorque.
- É aqui - disse Sérgio, conferindo a numeração
e encostando o carro.
O prédio até que não era dos piores, mas eu continuava
implicando com a pouca vizinhança. Um rapaz que esperava em frente
ao portão se aproximou.
- Sérgio?
- Fernando? Muito prazer! E desculpe o atraso. Estava tudo engarrafado,
sabe como é. Esta é Rebeca, minha noiva.
- Muito prazer, Rebeca - disse ele, estendendo a mão.
Depois ficou me olhando, sem nada falar. Fernando me parecia simpático,
honesto, alguém em quem se pode confiar. Mas será que
já...
Um barulho agudo assustou a todos nós. O grito que veio em seguida
ainda mais.
- Todo mundo quietinho!
Um carro freara bem ao nosso lado e um barbudo saltara de arma na mão.
- Passa os dólares, rápido!
Meu Deus! Eles estavam seguindo a gente desde a casa de câmbio!
E agora? Fiquei apavorada, minhas pernas fraquejaram, não conseguia
nem implorar para que levassem tudo e fossem logo embora. E as poucas
pessoas que poderiam nos ajudar simplesmente sumiam para dentro de suas
casas, batendo as portas.
- Cadê o dinheiro? Vai, cara, fala! - ameaçou o bandido,
encostando a arma na testa de Sérgio.
- Porra, Rebeca, dá logo o dinheiro para eles! - ele berrou,
desesperado.
Eu procurava feito louca, mas não conseguia encontrar. A bolsa
era daquelas enormes e vivia cheia de coisas. Além do mais, eu
colocara o dinheiro bem no fundo e estava tremendo de medo, não
queria morrer. O bandido só fazia me apressar e acabou por perder
a paciência, puxando a bolsa com toda a força. Como a alça
estava atravessada no meu braço fui arrastada junto, quase caindo
a seus pés. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, um soco
me atingiu.
- Larga, sua puta! Eu devia era te dar um tiro!
Senti primeiro uma dor aguda, depois ouvi gritos e explosões.
Um brilho intenso e branco surgiu bem na minha frente e começou
a pulsar. Daí em diante não consegui ouvir mais nada.
Fernando
O tal de Sérgio estava demorando demais. Queria poder viajar
logo, estava perdendo praia e só tinha os finais de semana para
me divertir. Mas também não adiantava anunciar o apartamento
se eu não estivesse disponível para mostrá-lo.
Ou então não conseguiria vendê-lo jamais. Mas que
era chato, era. Os pretendentes também trabalhavam, só
marcavam as visitas para sábados ou domingos.
Fora uma péssima idéia comprar o apartamento na planta
para revendê-lo quando estivesse pronto! Não sei onde estava
com a cabeça. Aliás, pensando bem, sei sim. Ana me convencera
de que seria um ótimo negócio. Ela era uma de minhas amigas
mais queridas, mas vivia me metendo em roubadas. Quando não era
uma festa chata, era uma amiga nova que ela queria me apresentar. Ana
tentava me arranjar uma namorada a cada seis meses, mas os namoros não
duravam. Só que ela não desistia. Dizia que eu tinha que
namorar, que me conhecia desde o ginásio e sabia que eu não
era mulherengo. Por que então eu não dava certo com ninguém?
Sei lá, só sei que eu me cansava, não dava certo
e ponto final. E já que era assim, preferia ficar sozinho.
Um carro com um casal encostou. Caminhei até lá e perguntei:
- Sérgio?
- Fernando? Muito prazer! E desculpe o atraso. Estava tudo engarrafado,
sabe como é. Esta é Rebeca, minha noiva - disse ele, gentil.
- Muito prazer, Rebeca - respondi, apertando sua mão.
Que mulher bonita! Ou melhor, não tão bonita, mas charmosa,
interessante. Está vendo, a Ana nunca me apresenta uma destas!
Engraçado, seria capaz de jurar...
Foi quando um carro parou cantando os pneus. Um cara forte saltou rápido,
já com a pistola apontada. Congelei. Estava com a carteira cheia
de dinheiro, com dois talões de cheques e com todos os cartões
de crédito.
- Todo mundo quietinho! Passa os dólares, rápido! - gritou
o ladrão, apontando para mim e para o Sérgio. Um outro
ficou dentro do carro com o motor ligado, pronto para a fuga.
- Cadê o dinheiro? Vai, cara, fala!
Sérgio demorou a responder e teve a pistola encostada no rosto.
Eu só conseguia pensar em como reagiria quando chegasse a minha
vez. E dava para ver que Sérgio estava apavorado.
- Porra, Rebeca, dá logo o dinheiro para eles!
Ela remexia na bolsa inteira, mas não encontrava. Ou será
que estava fingindo? Se estivesse, que coragem! Ou melhor, que maluca!
Não é recomendável brincar com um bandido nervoso
e armado. Enquanto ela procurava tive alguns segundos para pensar e
comecei a achar que seria poupado. Os ladrões mal olhavam para
mim, tinham vindo atrás do casal, já sabiam que eles carregavam
dólares. Acho que eu só estava no lugar errado na hora
errada.
O bandido acabou se cansando de esperar e puxou a bolsa com toda a força,
quase jogando Rebeca no chão. Não sei porquê, mas
tive o impulso de defendê-la. Graças a Deus consegui me
controlar. Qualquer tentativa de reação não seria
coragem, seria estupidez. Só que o bandido deu um murro na cara
dela.
- Larga, sua puta! Eu devia era te dar um tiro!
Antes que eu me desse conta já tinha partido para cima dele.
Acho que os primeiros tiros que me atingiram vieram do carro, mas tenho
certeza que os dois bandidos atiraram várias vezes. Ainda consegui
olhar à volta e ver Sérgio e Rebeca também caídos,
enquanto o carro arrancava. Depois não agüentei mais a dor
e perdi os sentidos.
Sérgio
A vida não é tão difícil como dizem por
aí, é só uma questão de organização.
Eu já tinha um bom emprego, algum dinheiro guardado e estava
de casamento marcado com Rebeca, uma mulher bonita, inteligente e de
boa família. Meu futuro estava traçado, era só
deixar a vida passar.
Até casa nós já tínhamos. Um tio dela que
eu mal conhecia nos emprestara um apartamento espaçoso, com vaga
na garagem. Certamente melhor do que os que eu conseguiria comprar sem
me endividar. Eu já tinha tudo planejado. Primeiro faria com
que Rebeca se apaixonasse pelo apartamento. Depois a convenceria a pedir
ao tio que nos vendesse o imóvel, a longo prazo e preço
baixo. O tio acabaria cedendo. Ele era rico e Rebeca a queridinha da
família, seus desejos eram ordens. Mas eu precisava ao menos
manter as aparências, fingir que estava procurando um apartamento.
E não seria difícil, bastava visitar junto com Rebeca
apenas os que eu tinha certeza que não a agradariam.
Ganhamos nossa lua de mel de forma parecida. Passei um mês falando
como adoraria levá-la a Nova Iorque, como seria maravilhosa nossa
primeira viagem internacional. Depois voltei atrás, alegando
que era o momento de pouparmos. Dois dias depois, os pais dela preferiram
pagar para não ver a filha desolada e nos ofereceram a viagem.
Sem gastos com passagens e hospedagem poderei dar bons presentes para
Rebeca. E no fim ainda ficarei com fama de responsável e generoso.
Havíamos acabado de comprar os dólares e estávamos
indo conhecer um apartamento num bairro isolado, onde algumas ruas não
tinham sequer calçamento. Não havia chance dela gostar.
Eu tentava falar pelo celular com o proprietário, mas ninguém
atendia. Acabei desistindo, já estávamos quase na porta.
- É aqui - avisei, encostando.
Mal havíamos saído do carro e um rapaz se aproximou.
- Sérgio?
- Fernando? Muito prazer! E desculpe o atraso. Estava tudo engarrafado,
sabe como é. Esta é Rebeca, minha noiva.
- Muito prazer, Rebeca - disse ele, enquanto apertavam as mãos.
Depois, em vez de virar-se para falar comigo, Fernando ficou a olhar
Rebeca, fixamente. Mas que cara-de-pau! Não pude interromper,
entretanto, pois um carro que freou forte fez isto por mim. Todos viramos
a tempo de vermos um homem saltando armado. Meu Deus, era um assalto.
O ladrão se aproximou apontando para o meu peito.
- Todo mundo quietinho! Passa os dólares, rápido!
Eles tinham nos seguido. Estávamos fodidos. Não havia
jeito, o melhor era entregar logo.
- Cadê o dinheiro? Vai, cara, fala! - ameaçou o bandido,
violento, colocando a arma no meu olho.
- Porra, Rebeca, dá logo o dinheiro para eles! - implorei.
Por que ela demorava tanto? Por que não entregava tudo de uma
vez? Pensando como eu, o bandido tentou com um puxão arrancar
a bolsa, quase derrubando Rebeca. Depois ainda acertou um soco em cheio
na cara dela.
- Larga, sua puta! Eu devia era te dar um tiro!
Estava rezando para ele não matá-la quando o tal Fernando
tentou fugir e foi atingido por dois disparos feitos pelo ladrão
que ficara no carro. Instintivamente dei um passo à frente e
foi quando o outro me fuzilou. Desabei ouvindo os tiros, mas pouco depois
o silêncio já era total. Eu estava desmaiado. Ou então
morto.
Levantei-me sem dificuldade e vi três homens chegando. Havia algum
tipo de energia circulando seus corpos. Seriam espíritos? Logo
entendi que não. Eram vivos e tentavam virar meu corpo para ver
se eu ainda respirava. Mas seria em vão, eu já sabia.
Eu estava morto. Mas não sentia dor, nem havia desespero. Era
como se eu estivesse emocionalmente anestesiado.
Olhei à volta, entre curioso e consternado. Rebeca e Fernando
também tinham sido assassinados, o mar de sangue não deixava
dúvidas. Os bandidos haviam descarregado suas pistolas. Mas por
quê, meu Deus? Por que não levaram só o dinheiro?
Não demorou muito e uma ambulância apareceu. Era estranho
não ouvir as sirenes, nem os gritos, nem os comentários.
Sim, pois uma pequena multidão já se formava. Pelo menos
na morte eu seria notícia.
Mas, se eu ainda estava ali, onde estariam Rebeca e Fernando? Procurei
por perto, mas não os encontrei. Afastei-me um pouco da confusão
e foi quando os vi, ao longe. Estavam partindo. Fui atrás, enciumado,
e me dei conta de que não precisava mais andar. Estava flutuando.
- Rebeca! - gritei, chegando perto.
Eles não me ouviram. Ou fingiram que não me ouviram. Pareciam
embasbacados, drogados, entorpecidos.
- Rebeca! - repeti.
- Não adianta - falou alguém, atrás de mim.
Virei-me e vi um homem de meia-idade vestindo um hábito de monge.
- Quem é você?
- Um amigo, vim ajudar.
- Pois então ajude! Ela está indo embora e em breve se
casaria comigo!
- Não creio. O casamento seria cancelado.
- Cancelado? Por acaso você é maluco? - perguntei, irritado.
- Eles já foram casados várias vezes. Foram também
pai e filha, irmãos, companheiros e amigos íntimos. Plantaram
e colheram juntos, amaram e sofreram juntos, construíram juntos,
viajaram juntos, passaram fome e sede juntos, e também juntos
fartaram-se em grandes festas. Tiveram filhos, muitos filhos. Não
haveria como impedir, entenda. São almas gêmeas. Sua vida
estava prestes a mudar.
- Como você pode ter tanta certeza? - duvidei, ainda incrédulo.
- Não é tão raro quanto você possa imaginar,
já vi outras vezes. E seria até sorte acontecer antes
do casamento. Encontros de almas gêmeas são capazes de
inspirar poetas, mas também de destruir lares estabilizados há
anos.
- Sorte? Como assim, sorte? Eu acabei de ser assassinado!
Estava indignado, mas não esperei que o monge respondesse. Rebeca
e Fernando se afastavam cada vez mais.
- Você pode me dizer aonde eles estão indo?
- Vão percorrer o mundo em busca dos lugares onde já viveram.
Vão rever lado a lado suas vidas e suas trajetórias. E,
acredite, terão muito o que conversar. Reencontrar uma alma gêmea
no momento de uma morte trágica é como um prêmio.
A alegria intensa e as muitas lembranças fazem a dor recente
ser facilmente ultrapassada. Mas agora venha, precisamos partir também.
Ele saiu na frente e passei a segui-lo. Logo flutuávamos velozmente
sobre o mar azul, perto da costa. Mas eu não conseguia me entreter
com a paisagem, continuava inconformado. Perdera a minha vida planejada,
perdera meu emprego e meu dinheiro. Até minha futura mulher me
abandonara sem sequer dizer adeus! De repente eu não tinha mais
controle sobre nada.
- Para onde você está me levando?
- Para uma ilha.
- Para uma ilha? Mas que ilha?
- Você conhece Roma?
- O quê?
Já ia responder que não, mas senti nascer uma dúvida.
E por mais que eu tentasse me convencer de que jamais saíra do
Brasil, outro pensamento se impunha, dominante. Sim, eu conhecia Roma,
conhecia Roma muito bem.
Lembrei do circo, dos banquetes e das estátuas, dos arcos e das
cúpulas. Fechei os olhos e mais detalhes vieram à tona.
As togas, as túnicas e as lanças, os banhos e os mercados
onde se vendia de tudo. Lembrei também dos espetáculos
e senti até o cheiro azedo do povo nas galerias. Lembrei então
de uma casa afastada com um mosaico na entrada. Lembrei do pátio
e de seu pequeno espelho d'água. E foi quando lembrei de Antônia.
- Aproveite - disse o monge, interrompendo o curso do meu pensamento.
Um arrepio transpassou-me, afiado como uma espada. Ávido, abri
os olhos e vi em frente uma ilha. Na praia havia apenas uma pessoa a
me esperar. Uma emoção incontrolável me dominou.
Comecei a chorar convulsivamente, um pranto sem lágrimas. Sentia
uma alegria inimaginável, plena, completa, incontida, arrebatadora,
desavergonhada. O magnetismo entre nós era impressionante, inevitável.
Tudo o mais perdera a importância. Eu só queria rever Antônia.
Antes de me entregar, porém, ainda consegui reunir forças
para olhar para o monge e agradecer. Mas ele já ia longe, acenando
e sorrindo.
Carlos
Luz
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