por Carlos Luz
Eu não conhecia nada mais deprimente do que ficar sozinho em
casa, na época de natal. Longe dos amigos, longe da família.
Desde o acidente ninguém mais aparecera, ninguém mais
dera as caras. Nem mesmo uma árvore a piscar havia. A casa que
eu amava estava largada, empoeirada, descuidada, só me causava
tristeza. Minha filha, depois que se casou, pouco me visitara. Não
gostava, sentia frio. Dizia que já sofrera o bastante, passando
aqui os anos de sua infância. Ninguém mais tinha interesse
pela casa, apenas eu.
Como que só para me desmentir, a porta subitamente se abriu.
Foi algo tão inesperado que fiquei estático por alguns
segundos, mas logo reconheci o intruso. Era Pedro, o marido de minha
filha. Onde ela estaria? Ele entrou, acendeu as luzes e, displicente,
largou uma mala em cima do sofá. Com o impacto, rapidamente formou-se
uma nuvem de poeira, flocos flutuantes brilhando em várias cores.
Pedro tossiu e começou a ofegar. Ávido, procurou no bolso
da calça a bombinha e levou-a à boca, aspirando várias
vezes. Pudera, uma casa abandonada não é exatamente um
lugar apropriado para um asmático. Mas então... O que
ele estaria fazendo aqui?
Só podia ser! Tinha vindo atrás do dinheiro! Mas como
descobrira? Eu nunca comentara sobre o cofre! Bem, se ele sabia que
havia um cofre na casa, pelo menos não sabia onde fora instalado.
Assim que melhorou, Pedro dirigiu-se a um lugar improvável, o
quarto da bagunça - quase que um depósito.
Fui atrás dele sorrindo, vitorioso. Se Pedro achava que seria
fácil botar as mãos no meu dinheiro, estava completamente
enganado. E por que a minha filha não tinha vindo junto? Não
podia ser assim! E se ele escondesse uma parte, ou até mesmo
tudo, e depois dissesse que nada havia? Não, não, aquilo
não estava certo!
Depois de procurar durante algum tempo em um dos armários, Pedro
soltou um suspiro aliviado. Tinha achado uma boneca. A boneca de pano
que minha filha mais gostava, aquela que não largava quando criança.
Estava velha, é evidente, mas ainda bem conservada. Minha filha
fora sempre uma menina cuidadosa. Natural, puxara ao pai.
Eufórico, Pedro foi até a sala e tirou da mala um computador.
Colocou-o em cima da mesa, conectou alguns fios à parede e depois
ligou a máquina. Eu sabia o que ele queria fazer. Nos últimos
anos, usara a internet todos os finais de semana para ver e falar com
minha filha. Ela não me visitava, era o melhor que eu podia arrumar.
Sentia-me envergonhado. Duvidara de Pedro sem razão e não
podia sequer pedir desculpas. Após o ruído característico,
Pedro conseguiu a conexão e logo minha filha apareceu na tela,
sua voz de menina a ecoar pela sala. Uma onda de pura felicidade transpassou-me,
arrebatadora. Eu chegara mesmo a pensar que jamais a veria de novo!
Ela estava um pouco mais gorda, rosada, os cabelos presos num rabo de
cavalo. Também achei a imagem maior e mais definida do que a
que eu estava acostumado. Seria apenas uma falsa impressão?
Depois de falar sobre horários, viagens e saudades, Pedro mostrou
a boneca. Minha filha sorriu, docemente. Como quando ganhava um presente.
Então sumiu da tela, para logo depois voltar. Desta vez carregava
um bebê. Por um segundo a emoção me dominou. No
instante seguinte, gritei como jamais havia gritado, surpreso, atônito,
apavorado. Pobre de Pedro, se pudesse me ouvir: o susto o teria matado.
Um espírito brilhante entrara pela janela e vinha flutuando devagar
em minha direção, envolto por uma luz difusa. Usava um
hábito de monge, mas ainda assim inspirava medo. Não era
para menos, desde que eu morrera jamais vira outro espírito!
Ninguém aparecera para me receber, ninguém viera me buscar.
E em breve faria um ano! O espírito se aproximou e estremeci
quando pude olhar nos seus olhos. Cheguei mesmo a pensar em fugir, mas
ele baixou a cabeça num cumprimento, o que muito me acalmou.
Depois olhou para a tela, curioso.
- É a minha filha - expliquei, aliviado.
- Encantadora - devolveu, sereno.
- E a criança que ela está carregando é, provavelmente,
minha primeira neta - orgulhei-me.
- Exatamente por isto estou aqui.
- Como assim?
- Agora que você já viu sua neta, chegou a hora de partirmos.
Partirmos? Mas para onde? O que ele queria dizer com isto? E quem era
ele, afinal?
- Você é um anjo? - perguntei de repente, emocionado.
O espírito abriu um largo e doce sorriso. Seus dentes eram perfeitos,
seus olhos negros brilhavam.
- Podemos dizer que sim - respondeu, misterioso.
- E vou ter que deixar minha casa?
- Não é mais sua casa, foi vendida. Mas não fique
triste, você teve e terá muitas outras.
Vendida? A minha casa? Vendida para quem? Pensei em perguntar, mas senti
que já não era tão importante. Eu tinha dúvidas
mais urgentes.
- Vamos sair flutuando?
- Claro! Você não gostaria de planar pelas ruas? Vistas
do astral, as luzes de natal são ainda mais bonitas.
Sorri para ele, pela primeira vez. Quem não gostaria, depois
de quase um ano trancado em casa? Mesmo assim, continuava inseguro.
- Você ficará comigo?
- O quanto for preciso - tranqüilizou-me.
Então um pensamento me assaltou, violento. Cheguei a tremer de
excitação, ante a simples possibilidade.
- Quão longe poderei ir?
- Mais do que consegue agora imaginar.
- E estamos com pressa?
Por um longo instante achei que o anjo fosse dizer que sim, que não
haveria tempo, que eu já me atrasara demais. Mas sua expressão
desanuviou-se e ele tornou a sorrir, cúmplice, complacente.
- Não, não estamos com nenhuma pressa.
Virei-me então para a tela do computador e disse, como se ela
pudesse me ouvir:
- Espere por mim, filha. Já estou chegando.
Carlos
Luz
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