
por Carlos Luz
- Porra, Suzana, tente me entender!
- Não adianta, Zé, não adianta. Não concordo
e acabou! Nós estamos bem aqui, melhor do que qualquer um dos
nossos amigos! Para que mudar de país? Parece idéia fixa!
Suzana é teimosa como uma mula e ainda por cima insiste em chamar
meu filho de Zé. Eu dei a ele um nome tão lindo e ela
só chama ele de Zé. No mínimo Zé Eduardo!
- Por favor, presta atenção, Suzana! É um grande
passo na minha carreira, eu não posso recusar.
- Claro que pode, foi só um convite! Você é jovem,
já é diretor regional e a minha carreira também
vai bem, obrigada! Ou ela não conta? Quer que eu simplesmente
abandone tudo?
- Você pode pedir uma transferência para lá, não
pode?
- Ah, vai ser moleza. É só chegar na empresa e falar "eu
gostaria de passar uma temporada em Londres, por favor".
Como se não bastasse, é uma debochada! Que mulher desagradável!
Que escolha infeliz meu filho fez!
Esta parte da discussão soava para mim como um perfeito absurdo,
debater o inquestionável. Ela tem que dar prioridade ao futuro
do meu filho porque ele é homem e ponto final. Ela que cuide
da casa e da filha. Não entendo como o José Eduardo ainda
permite que ela trabalhe...
- E a nossa filha, Zé? Você acha que ela não vai
sofrer ficando longe dos amigos, do clube, dos priminhos, da praia?
Você acha que ela vai gostar de viver no frio?
- Mas ela vai aprender outra língua! Criança se acostuma
com tudo, Suzana!
É o que sempre digo! Meu Deus, além de aturar uma mulher
preocupada com trabalho, meu filho agora tem que direcionar seu futuro
levado pelas vontades de uma criança? Era só o que faltava!
- Seu modo de pensar está fora de moda por estas bandas.
Virei-me assustada. Quem dissera isto?
- O que a senhora ainda faz aqui? Não sabe que está morta
para eles?
Era um monge. Ele me olhava como quem surpreende uma criança
a roubar biscoitos. Mas quem permitira a sua entrada nos aposentos de
meu filho? Que audácia!
E claro que sei que estou morta, não sou nenhuma idiota. Vi os
médicos tentando me reanimar, vi quando desistiram e cobriram
meu corpo. Depois acompanhei o velório e assisti também
ao enterro - pouca gente compareceu. Sim, sei que estou morta, mas tenho
pendências a tratar.
- Não fomos apresentados e o assunto não é de sua
alçada, mas não me custa responder. Eu estou morta, mas
meu filho passa por um momento importante e precisa...
- A senhora morreu com quantos anos? - interrompeu-me, o mal-educado.
- Oitenta e sete - respondi, com orgulho.
- Uma longa vida, na qual a senhora pôde fazer suas escolhas,
mesmo que tenham sido apenas baixar a cabeça e aceitar tudo o
que os outros diziam. Pois chegou a hora de deixar seu filho fazer as
dele. Afinal, é ele quem vai ter que arcar com as conseqüências,
sejam elas boas ou ruins. Mas o mais grave é que, ficando por
perto, a senhora só está causando mal.
- Como ousa falar isto? - indignei-me de pronto.
Causando mal ao meu próprio filho? Este senhor pode até
ser um monge, mas não é capaz de dizer coisa com coisa!
- Como posso causar mal ao meu filho se apenas assisto ao que acontece?
Mas nem que eu quisesse! Ele não é sequer capaz de me
ouvir!
- Há três meses a senhora acompanha o dia-a-dia de seu
filho bem de perto, desejando ardentemente que ele aceite o convite
e vá morar em Londres. Acha mesmo que isto não o influencia?
Pois saiba que, na verdade, influencia muito mais do que se a senhora
estivesse viva argumentando com ele. O seu pensamento fervoroso e contínuo
reforça por demais a intuição que ele mesmo já
sente em relação a Londres, reforça a ponto de
deixá-lo confuso. Seu filho já começa até
a questionar o próprio casamento. E tudo isto sem que ninguém
saiba qual é a verdadeira razão.
- Do que o senhor está falando? Ora, é apenas uma boa
oportunidade de trabalhar num país diferente! Por que não?
- E a senhora diria o mesmo se ele fosse convidado para um cargo ainda
melhor na Espanha?
Tentei com todas as forças, mas não consegui responder
que sim. Dentro de mim algo dizia que não, gritava que não,
insistia que para a Espanha meu filho não podia ir! Enquanto
eu tentava entender, o monge ficou a me olhar, sorrindo.
- Por quê? - perguntei apenas, rendendo-me às evidências.
- A senhora e seu filho viveram como irmãos em Londres, no século
XVIII. No começo foi difícil, vocês passaram fome,
mas seu irmão era hábil e aos poucos tornou-se um abastado
comerciante de lã. Com o tempo, pôde dar conforto a toda
a família. Até hoje, muitas e muitas décadas depois,
a simples menção de Londres ainda traz a ambos uma inexplicável
sensação de poder, segurança e bem-estar.
Era a mais pura verdade. Eu sempre fora encantada com a cidade, desde
jovem, e jamais me perguntara o porquê. José Eduardo, então,
já visitara Londres cinco vezes! Mas como será que este
monge sabia de tudo isto?
- Quanto à Espanha, numa outra vida ele foi seu pai e acabou
assassinado numa estúpida rixa de jogo. Por causa da tragédia,
sua mãe teve que se prostituir para comer e quando ela morreu
você seguiu o mesmo rumo, violentada por bandoleiros e jogada
do alto de um barranco. Natural que sua intuição seja
ruim.
Pensar nestas vidas passadas ampliou meu pensamento, fez meu mundo subitamente
se expandir. De repente eu não cabia mais naquele quarto, nem
naquele apartamento, nem mesmo naquela época. Eu me sentia de
novo jovem, bem disposta, com muito a fazer. Além do mais, meu
filho vivera várias vidas, fora meu irmão e meu pai, saberia
se virar sozinho. Eu precisava partir.
- Vamos sair daqui - disse o monge, como se lesse o meu pensamento.
Saímos pela janela e ficamos a flutuar sobre a rua, lado a lado.
- Por que ninguém apareceu para me buscar? - perguntei, retomando
a conversa.
- Por acaso a senhora desejou partir?
Mais uma vez o monge tinha razão. Seria ele um santo?
- Não, mas agora desejo.
- Bem, então basta que...
- Quem vem lá? - perguntei de supetão.
Um grupo de pessoas surgira ao longe. Pareciam enfermeiros e se aproximavam
vagarosamente, de mãos dadas. De onde teriam vindo? O monge olhou
para eles por um momento.
- São kardecistas. A senhora é kardecista? - perguntou,
com um sorriso maroto no canto da boca.
- Sim, sou, li muitos livros enquanto meus olhos permitiram. E embora
antes eu não desejasse partir, estranhava não terem vindo
me buscar.
- Bem, aí estão eles - disse o monge, sorrindo mais uma
vez.
- Mas então a vida depois da morte é como os kardecistas
falam, os kardecistas estão certos! - comemorei, feliz por ter
feito a escolha correta.
- Sim, mas não só eles, os outros também estão.
O plano astral é bem mais democrático do que a Terra.
Aqui não existem grandes distâncias, pois nos movemos com
a velocidade do pensamento e nunca nos cansamos. Não existem
também limites físicos, assim ninguém pode nos
prender e não é preciso fugir. No plano astral a regra
é a atração, a afinidade, o magnetismo. Mas só
os semelhantes conseguem se manter juntos. E como o espaço astral
ao redor da Terra é imenso, há lugar para todos, sem disputas
ou conflitos. Os espíritas ficam em suas cidades e campos, os
budistas encontram-se em seu nirvana, os cristãos agrupam-se
em igrejas magníficas. O alto astral é repleto de templos
das mais diversas correntes religiosas, algumas extintas na Terra, e
todos construídos com o fervor de muitas almas.
- De que material são feitos estes templos? - quis saber, curiosa.
- Do mesmo material de que são feitos os sonhos. Mas não
são apenas as religiões que fazem os espíritos
se juntarem por afinidade no astral. Existem grupos de matemáticos,
de cientistas e de astrônomos. Existem até grupos de espíritos
cujo interesse maior é observar e cuidar dos animais. Estes diferem
dos demais por preferirem reunir-se na superfície da Terra, embora
escolham sempre florestas densas, onde o Homem ainda não chegou.
Estaria ele falando sério? Eu já não sabia mais
se o tal monge era um santo ou um louco.
- E aqueles que não acreditam em nada? - perguntei, como que
para testá-lo.
- O choque ao ver que tudo prossegue após a morte é grande,
mas a lembrança de que já passaram por isto muitas outras
vezes logo se impõe.
Os kardecistas estavam perto, mas toda esta conversa havia despertado
o meu interesse por outras possibilidades. Ainda tentei fazer uma última
pergunta.
- Se existem tantos lugares no astral, devo mesmo partir com eles?
Mas o monge não teve tempo de responder. Os kardecistas chegaram
e na mesma hora percebi que não havia mais qualquer possibilidade
de dúvida. Eles me envolveram de tal forma com seu amor, atenção
e carinho que nem mesmo percebi quando o monge se foi. Mas já
não tinha qualquer importância. Eu estava entre irmãos.
Carlos
Luz
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